Berlim: A cidade mais legal do mundo
Duas guerras mundiais. Ascensão e queda do nazismo. Um muro divisor por quase 30 anos.
Mesmo depois de tanta coisa, Berlim é hoje a capital criativa e cultural da Europa.
Em 1976, David Robert Jones, hoje conhecido como David Bowie, decidiu deixar Los Angeles para
morar em Berlim. Atraído pela cena musical em ebulição, o músico buscava uma nova carreira na
cidade dividida por um muro. O apartamento barato em que morava ficava no bairro de Schöneberg, em
um prédio que tinha sobrevivido às duas guerras mundiais. O músico se reinventou na capital alemã e,
graças a ela, lançou os álbuns da “Trilogia de Berlim”: Low, Heroes e Lodger. “Berlim é o centro de tudo
que está acontecendo e irá acontecer na Europa nos próximos anos”, disse Bowie à revista Vogue na
época.
Berlim hoje é considerada um centro de atração para artistas de todo o mundo, que se mudam para lá
por considerarem “Berlin, the place to be” (em inglês: “Berlim, o lugar para se estar”), como diz a
campanha oficial de turismo da cidade desde 2009.
E a cidade não desaponta: oferece a infraestrutura que os moderninhos e descolados procuram.
Prédios abandonados viraram apartamentos invadidos (e baratíssimos), fábricas e bunkers inativos são
espaços para galerias de arte ou festas e há até um antigo aeroporto e uma torre de espionagem que
servem de palco para festivais de música. Há mais de 420 galerias de arte – a maior concentração da
Europa – que dividem a atenção com os museus e os tours guiados de arte de rua. Tanta inspiração
levou 160 mil profissionais a se empregarem na indústria criativa (música, artes, cinema, TV, design,
desenvolvimento de softwares etc.), que produz 10% do PIB da cidade, de acordo com o último relatório
oficial da prefeitura.
Como fazer uma cidade criativa
Artistas tendem a se reunir em agrupamentos para compartilhar ideias e se apoiar uns nos outros na
produção artística. Em um trabalho publicado no Jornal da Universidade de Oxford, economistas
chamaram isso de buzz – os processos que ocorrem ao mesmo tempo no mesmo lugar e que acabam
gerando mais informação, ideias e inspiração, envolvendo consumidores, críticos, turistas e criadores de
políticas de incentivo. Coisas que existem em Berlim de sobra.
Artistas tendem a se reunir em agrupamentos para compartilhar ideias e se apoiar uns nos outros na
produção artística. Em um trabalho publicado no Jornal da Universidade de Oxford, economistas
chamaram isso de buzz – os processos que ocorrem ao mesmo tempo no mesmo lugar e que acabam
gerando mais informação, ideias e inspiração, envolvendo consumidores, críticos, turistas e criadores de
políticas de incentivo. Coisas que existem em Berlim de sobra.
Para o economista Ake Andersson, em Handbook of Creative Cities (“Guia das cidades criativas”),
algumas condições preparam o terreno para a inventividade humana desde a Grécia Antiga. Berlim
recebe imigrantes há séculos: judeus desde 1671, protestantes franceses, os huguenotes, desde 1677 –
e, já no século 17, as leis de imigração foram afrouxadas para que a cidade pudesse receber fugitivos
religiosos e minorias étnicas.
Uma capital-instalação
Berlim tem 775 anos vividos bem no meio de reviravoltas históricas. Apenas no século 20, a cidade
começou como capital da Prússia para depois sobreviver a: duas guerras mundiais, duas unificações,
ascensão e queda do nazismo, e construção e queda de um muro divisor por quase 30 anos. “Paris é
sempre Paris, enquanto Berlim nunca é Berlim”, disse o político francês Jack Lang, já nos anos 2000.
Há quem diga que, na comparação, as vizinhas Paris, Londres e Roma são cidades-museu enquanto
Berlim é uma cidade-instalação-artística. Depois da Segunda Guerra, a capital em ruínas precisou
reconstruir não só sua estrutura física, mas também sua identidade. Seiscentos mil apartamentos foram
destruídos pelos bombardeios e apenas 2,8 milhões das 4,3 milhões de pessoas que originalmente
viviam lá permaneceram.
A linha do tempo para entender como Berlim chegou a polo artístico começa nos anos 20, quando a
cidade foi construída para ser o centro político e financeiro do país. “A infraestrutura foi planejada para
atender de 4 a 5 milhões de habitantes, mas, com a Segunda Guerra Mundial e o muro, o que
aconteceu foi uma drástica diminuição da população”, diz Nikolaus Wolf, professor de História
Econômica da Universidade de Humboldt, em Berlim. Mesmo depois da reunificação, a população está
longe de atingir os números de antes. Hoje a capital alemã tem 3,5 milhões de habitantes, o que deixa
boa parte de sua estrutura vazia.
Quando o muro foi construído, circulando a parte capitalista da cidade bem no meio do território
comunista, a fuga de gente e capital se consolidou. “As empresas, pequenas e grandes, se mudaram
em massa para outras regiões da Alemanha com medo de expropriação”, conta Wolf. Para resolver o
problema, a Alemanha Ocidental começou a oferecer subsídios para quem se mudasse para a porção
capitalista de Berlim, mas não foi o suficiente para reverter a situação.
Depois que o muro caiu, em 1989, o boom econômico esperado com a reunificação da cidade não veio,
já que as empresas não precisavam mais voltar suas sedes para Berlim por causa da era da
computação. A cidade continuava oferecendo uma estrutura maior do que a população precisava e os
artistas já tinham chegado. O resultado: aluguéis extremamente baratos e prédios abandonados a
serem ocupados para moradia, trabalho e instalações artísticas. De fato, hoje em dia, 85% da
população moram em propriedades alugadas.
O cineasta alemão Lucian Busse lançou o documentário Berlinized: Sexy an Eis (“Berlinizado: Sexy no
gelo”), mostrando como era o espírito hedonista depois da queda do muro, e que moldou boa parte da
imagem da cidade de hoje. Foi nessa época que surgiu o prédio ocupado mais famoso da cidade, o
Kunsthaus Tacheles, formado por artistas que tomaram uma antiga loja de departamentos
bombardeada e a transformaram em um centro de arte com exposições, estúdios, balada e cinema. O
espaço foi fechado em meados de 2012 após anos de disputas legais. Era o sinal dos novos tempos.
Qual a próxima parada?
Uma capital cosmopolita com aluguéis baratos parece um paraíso, mas a realidade anda mudando nos
últimos tempos. O valor médio do aluguel em Berlim subiu 8% no último ano e 26% nos últimos cinco
anos, segundo a companhia imobiliária berlinense ImmobilienScout24. Cartazes pela cidade reclamam
do “enobrecimento” de bairros tradicionalmente proletários, como Neukölln, que foram tomados por
famílias, turistas e yuppies endinheirados, principalmente do sul da Alemanha e de outros países
europeus.
Os moradores podem reclamar das invasões nos seus Kiez (vizinhanças menores, dentro dos bairros,
com comércio local e características próprias), mas é possível que a cidade não escape do ciclo
inevitável de desenvolvimento de uma grande metrópole, como aconteceu em Londres e Paris. A boa
notícia é que o medo de que a festa tenha acabado não é inédito. “Quando o muro caiu, a gente pensou
‘o paraíso acabou, os aluguéis vão subir’. E foi surpreendente ver depois que ainda havia tantas
possibilidades”, diz Busse. Para ele, boa parte do potencial artístico hoje vem de pessoas que ainda
estão chegando de outros lugares. “Isso é o que, em uma maior amplitude, sempre aconteceu em
Berlim.” De fato, para uma cidade que sobreviveu a Hitler, ao nazismo e a um muro divisor, os desafios
do futuro parecem fichinha.
Mapa da criatividade
Houve uma época não muito distante em que Berlim não tinha um centro, tinha dois. Um próximo ao
zoológico, na parte ocidental, e outro em Stadtmitte, na porção oriental. Essa que prevaleceu e é hoje
lar dos criativos.
Kreuzberg: o bairro mais boêmio de Berlim. O mix de imigrantes turcos, estudantes, proletários, punks
e artistas fazia parte do charme local, mas a área não fugiu à invasão dos turistas nos últimos anos. Ao
redor da Oranienstraße está o coração da vida noturna local, mas o bairro ainda inclui atrações como o
Badeschiff, uma piscina pública flutuante no rio Spree, e as tradicionais feirinhas de comércio turco.
Neukölln: de periférico a hip, a tradicional vizinhança de imigrantes e proletários muda a toda hora. Os
estudantes e artistas que queriam fugir dos aluguéis caros em Kreuzberg atravessaram o canal em
direção a Neukölln. Os cafés, bares e galerias de arte redor da rua Weserstraße não estão nem nas
fotos do Google Street View tiradas em 2008. As lojas de antiguidades dividem espaço com
restaurantes de culinária paleolítica, mercadinhos de comida orgânica e cafés com brunch.
Schöneberg: além do endereço de David Bowie, foi também a vizinhança do escritor Christopher
Isherwood, do físico Albert Einstein, do cineasta Billy Wilder e onde nasceu a atriz Marlene Dietrich.
Estudantes procuram pelos aluguéis mais acessíveis em comparação com Kreuzberg e a região da
Nollendorfplatz é área gay desde os anos 1920.
Mitte: quem manda aqui é a chanceler Angela Merkel e as últimas tendências da moda. Prédios do
governo e museus dividem espaço com cafés e galerias. Por muitos anos, Mitte foi o endereço do squat
mais famoso da cidade, o Kunsthaus Tacheles.
Prenzlauer Berg: depois do muro, atraiu muitos jovens e artistas, com os aluguéis baratos e
apartamentos vazios. O resultado foi muitos bares, restaurantes, cafés e lojas. Nos últimos anos, o
aumento dos aluguéis causou uma mudança no perfil dos moradores: de jovens estudantes para jovens
famílias yuppies (e muitos bebês).
Friedri-chshain: também foi tomado por artistas e estudantes após a reunificação. Algumas das
baladas mais famosas da cidade também ficam nessa região, como a Berghain, localizada numa antiga
usina elétrica.
Prinzessin-nengärten: num espaço vazio que ficava entre muros em Kreuzberg, o grupo de ativistas
Nomadisch Grün criou uma horta coletiva com alimentos orgânicos cultivados por locais. No meio dos
prédios, é possível ajudar na horta e comprar verduras e frutas.
Aeroporto Tempelhof: símbolo da era nazista, o aeroporto foi desativado em 2008 e transformado em
parque público, dois anos depois. O prédio principal é aberto para visitação apenas em tours guiados, já
a área externa ao redor é livre para a prática de esportes nas antigas pistas para aviões. É comum ver
grupos com churrasqueiras portáteis na grama.
Stattbad Wedding: não precisa levar os óculos de natação para essa piscina pública – ela está vazia.
Foi construída no início do século 20 e transformada em espaço para exposições de arte urbana e
festas.
Teufelsberg: uma torre de espionagem da inteligência americana localizada no topo de uma colina
artificial, formada por destroços da artilharia nazista e escombros da Segunda Guerra. Teufelsberg foi
privatizada, mas os projetos de reaproveitamento não saíram do papel. Hoje, é visitada por aventureiros
que pulam a cerca de proteção e escalam o prédio.
Spreepark: o parque de diversões da Berlim Oriental não sobreviveu ao capitalismo. Privatizado, o
projeto de reabertura não saiu do papel e hoje tenta espantar os jovens que pulam a cerca para uma
visita clandestina. Tours guiados e pagos foram abertos em datas esporádicas para diminuir as
invasões.